A repórter que tornou dados da Covid mais transparentes em 4 estados do Nordeste
Para Luisa Farias, é burrice negligenciar o jornalismo de dados nas nossas redações
Como uma repórter de Recife participou de um projeto de dados de repercussão internacional? Como isso afetou o jornalismo que ela produz? As respostas estão na primeira entrevista da Catolé, que você lê abaixo.
Todos os dias, de domingo a domingo (Natal e Ano Novo inclusos), há 17 meses, Luisa Farias senta na frente do computador e transforma em dados abertos informações sobre a Covid-19 em quatro estados do Nordeste: Bahia, Maranhão, Paraíba e Ceará. A base de dados sobre a pandemia do Brasil.IO, projeto onde a paraibana é voluntária, já foi usada para estudos da Fiocruz, citada no Jornal Nacional e embasou matéria do The New York Times. Enquanto ajuda a tornar o Nordeste mais transparente, ela ainda arruma tempo para ser repórter de Política do Jornal do Commercio, no Recife; e gerir a própria empresa, a Elas Produz.
Nesta entrevista, Luisa fala sobre desafios de conseguir dados consistentes junto aos governos, mas também sobre como o jornalismo local, muitas vezes, não cumpre seu papel de questionar as informações oficiais.
Por que você participa desse projeto? Qual é o benefício dele pra sociedade? Eu sou uma entusiasta do trabalho com dados e tento trazer essas ferramentas para o meu dia-a-dia. E aí, eu vi nesse projeto uma oportunidade de eu fazer alguma contribuição, já que a pandemia me preocupou muito. Sobre o impacto, eu sei que muita gente usa esses dados: jornalistas, pesquisadores. Isso exige um senso de responsabilidade, que é permitido pelo próprio método do Brasil.IO de dupla checagem. A gente sabe que esses dados são usados para estudos e planejamento de políticas públicas.
Você coleta dados de estados do Nordeste. Que dificuldades você teve nesse período? A Bahia, por exemplo, não tinha horário certo para divulgar, os dados vinham em um pdf [formato em que não é possível trabalhar usando programação]. Na Paraíba, às vezes a soma dos dados não batia. E eu me preocupava muito porque, quando eu procurava um funcionário da Secretaria de Saúde para corrigir o número, eu tinha sido a única pessoa a perceber isso. Apesar de eu ser de lá, eu não moro na Paraíba; não cubro a pandemia, nem nada de lá. Me espantava saber que nenhum dos veículos de lá ia atrás disso. Simplesmente faziam esse processo passivo de pegar todas as informações e repassar sem nenhuma análise mais crítica de coisas bobas, uma soma. Já aconteceu de a gente achar no boletim o nome de uma cidade que nem existia mais e pedir para o estado corrigir.
Como coletar esses dados ajudou no seu trabalho como jornalista? Com os dados da Covid, a gente lançou no JC o painel com informações de cada município de Pernambuco. Eu não fazia a coleta de Pernambuco, mas utilizava os dados do Brasil.IO. E a gente conseguia mostrar índices que podiam ser decisivos para a população, como o número de casos por 100 mil habitantes. Isso era uma coisa que eu não via em outros veículos, nem no G1 [Pernambuco], que é um portal que tem a preocupação de produzir painéis. Acho que isso foi muito importante para manter as pessoas informadas. Enquanto leitora, eu quero saber como está a situação do vírus na minha cidade. E falar da posição de quem mora numa capital é muito fácil porque o sistema de Recife naturalmente é mais efetivo. Mas e uma pessoa que mora lá no Sertão? Às vezes, a prefeitura não tem sequer um site oficial. E o número de novos casos, somado à ocupação de leitos e ao índice de transmissibilidade, vai determinar como vão estar sendo feitas as políticas da região. Vai definir o que pode abrir e o que não pode.
Que tipo de ferramentas você usa? De início, eu usava o Tabula para extrair os dados que vinham em pdf e transformar em csv. E uso o Google Sheets como editor de planilhas. Aí, nas planilhas, eu uso algumas fórmulas, como o vlookup. Porque na Bahia, eles divulgam duas tabelas diferentes, uma para casos e outra para óbitos. Então, eu tenho que bater um dado com o outro.
Como você aprendeu a mexer nessas ferramentas? Antes de começar a fazer esse trabalho voluntário, eu já tinha alguma noção de Excel, porque eu tinha aprendido num curso básico de jornalismo de dados da Abraji. E eu comecei fazendo coisas bem manuais, lendo no pdf e escrevendo aquele número na planilha, por exemplo. Depois, eu aprendi a usar o Tabula, o vlookup, coisas que foram mudando a minha vida. A gente brinca muito que jornalismo de dados é passar uma vida fazendo uma coisa que é super trabalhosa e, um dia, descobrir que existe uma forma de automatizar isso. Mas tudo bem também. Com o tempo a gente vai criando a necessidade com base nas apurações que a gente tem que fazer e descobrindo essas soluções.
Foi difícil esse aprendizado? Eu sou de Humanas. Pra mim, não é nada intuitivo lidar com números. Às vezes a minha sócia na produtora diz: “eu nunca vou saber fazer isso”. Mas sabe. A gente é capaz. E quando tem acesso a esse tipo de conhecimento, acaba se empoderando. A gente da imprensa fica sempre à mercê dos governos, de informações oficiais. Por exemplo, ouvir uma coletiva do governo para saber como está a situação da pandemia. E eles chegam e dizem: “os índices da covid melhoraram na região X, por isso nós vamos flexibilizar o horário de atividade econômica”. Mas tá, que índices? É uma posição muito passiva. E a gente é capaz de não depender disso. Nós deveríamos ter mais esse ímpeto de se antecipar às coisas; não apenas ficar esperando o governo anunciar. Porque nem sempre o governo diz o que deveria. E não é nem por ser algo bombástico. Mas é porque eles estão acostumados a não serem provocados.
Como fazer esse trabalho te afetou? No início, eu fiquei muito preocupada porque eu ficava vendo os números só aumentarem. Ter mil, dois mil casos por estado em um dia. Isso me desesperava, me fez entender desde o início a gravidade da pandemia. E muitas vezes, eu alertava a minha família em Campina Grande sobre a situação de lá. Mas chegou um determinado momento que virou uma coisa tão rotineira e tão automática, que de vez em quando pareciam ser só números. Tanto que as pessoas me perguntavam como estava a situação de Campina Grande, e eu não sabia mais responder. Isso me fez refletir muito que não adianta você saber onde captar os dados, como tratar e analisar eles, se você não tiver essa visão mais humana. Se você não lembrar que cada número daquele é uma pessoa que morreu. A gente não pode nunca esquecer disso.
Qual é o papel do jornalismo de dados no jornalismo? Teve essa discussão recente sobre o papel do jornalista de dados por causa da matéria da Folha. Ficou meio que uma divisão dos "puros" e os “não puros”, como se os jornalistas de dados fossem uma categoria superior e melhor. Não é. Até porque nem todo jornalista tem a oportunidade de trabalhar só com isso. E, antes de fazer jornalismo de dados, eu faço jornalismo. Ponto. Mas eu acho que a gente só tem a ganhar se utilizar essas estratégias. Ao mesmo tempo que não somos uma categoria diferente, a gente consegue ter um olhar diferente para as coisas. Inclusive com essa autonomia maior em relação ao discurso oficial. A maior contribuição que o jornalismo de dados tem pra dar é esse poder para cavar novas pautas, revelar novas histórias. Hoje em dia, não tem como pensar em uma coisa sem a outra, até porque o mundo está evoluindo para um uso cada vez maior da tecnologia. É até burro não usar. No meu contra-cheque não tem dizendo que eu fui contratada pra ser jornalista de dados. Eu é que resolvi trazer isso para o meu trabalho. Ninguém me mandou. Eu simplesmente fiz.
Fez mesmo. Se você quiser interagir com Luisa e continuar essa conversa, ela está no Twitter.
Elas no Congresso: Há mais de um ano, a Revista AzMina usa jornalismo de dados para acompanhar pautas que impactam a vida das mulheres no Legislativo brasileiro com o projeto Elas no Congresso, que, inclusive, faz um ranking dos parlamentares que mais apoiam (ou atacam) os direitos das mulheres no Brasil. Em Pernambuco, a deputada mais bem posicionada é Marília Arraes (PT). Em último lugar está o Pastor Eurico (Patriota). Agora, esse projeto corre o risco de acabar e, por isso, a revista criou uma campanha de financiamento coletivo. Se você puder ajudar, este é o link para doar.