Constrangimento e medo de perseguição ainda rondam a LAI
Lei criada há 10 anos ainda está sujeita a critérios duvidosos, escreve Géssika Costa
Quando Paulo Veras me enviou uma mensagem no WhatsApp com a proposta de assinar essa edição da Catolé, lembrei da “responsa” em escrever numa semana para lá de simbólica, bem no aniversário da Lei nº 12.527/2011, a Lei de Acesso à Informação, que completou 10 anos na última quinta-feira (18), desde que foi sancionada. Uma década se passou, mas afinal: temos o que comemorar ou que clamar ainda mais por ela?
Mesmo que o direito à informação tenha sido garantido na Constituição de 1988, considero a LAI o maior marco da transparência pública no Brasil. Formada em jornalismo desde 2015, só passei a usar a norma há quatro anos nos veículos independentes de Alagoas: a Agência Tatu, onde trabalhei até 2020 e o Olhos Jornalismo, que toco com mais três amigos atualmente.
Com uma frequência maior de pedidos feitos, entendi o quão simples e objetiva é a Lei, mas complexa, em alguns momentos, é a sua aplicabilidade no que concerne ao critério da impessoalidade no funcionalismo público. Digo isso porque mesmo morando numa capital de mais de um milhão de habitantes é possível que o simples pedido de acesso à informação — garantido por lei — esteja sujeito às mãos de agentes da transparência que não coadunam com a legislação e agem com critérios duvidosos.
No Governo de Alagoas, por exemplo, o Sistema de Informação ao Cidadão - eSIC permite que o cidadão oculte os dados na hora de fazer o pedido, mas, infelizmente, isso não acontece em outros órgãos da administração local, como a Prefeitura de Maceió. Em tese, não deveria haver nenhuma preocupação, mas na prática é bem diferente. Imagina um jornalista, aliás, um cidadão (não que jornalista não seja cidadão ahaha), que precise fazer um pedido numa cidade de pouco mais de 20 mil habitantes, em que o eSIC não oferece a opção de deixar a solicitação de maneira anônima. Pensou? Como ele vai ter a certeza que não será perseguido ou alvo de alguma intimidação pelos esclarecimentos solicitados?
Na verdade, isso não se restringe a cidades pequenas. Há dois anos, passei por um episódio em uma repartição onde o assessor de imprensa era também o responsável por responder às demandas feitas via LAI. Rompendo a impessoalidade, o funcionário público entrou em contato pelo WhatsApp pedindo mais informações sobre o pedido e perguntando quais seriam os motivos para eu não ter falado diretamente com ele. Naquele momento, constrangida, percebi as barreiras impostas até para usufruir do meu direito não apenas como jornalista, mas enquanto cidadã.
Desde então, tentando driblar esses percalços, utilizo algumas artimanhas para fazer pedidos via LAI em órgãos que não oferecem a possibilidade do anonimato. Não sou uma mulher de segredos, mas para não me comprometer, não posso revelar por aqui como faço. Acho que boa parte de quem escreve reportagens baseadas em informações obtidas via a LAI também já deve ter utilizado esse artifício. (PS. quem quiser trocar uma ideia sobre o assunto, fala comigo pelo Twitter explicando que leu a Catolé).
Conversando com a cientista política, ativista em transparência governamental e criadora do Pernambuco Transparente, Raquel Lins, sobre o tema, recebi a recomendação de protocolar uma denúncia, juntando provas e encaminhar à ouvidoria do Ministério Público de Alagoas, uma vez que esse tipo de contato feito pelo “duplo assessor” evidencia um claro desrespeito ao meu direito.
Essa mesma discussão foi feita há três anos por organizações como a Transparência Brasil, a Abraji e a Open Knowledge Brasil que apresentaram uma carta aberta solicitando que os estados e municípios passem a permitir que cidadãos possam realizar solicitações anonimamente. Sabemos, claro, que de acordo com a legislação o nome do requerente e ao menos um dado de identificação precisam ser repassados no momento do pedido, mas a discussão é outra.
O que estamos buscando é o anonimato para o cidadão em face da possibilidade de conduta inadequada do servidor público. Ou seja, que esse tipo de dado não precise ficar disponível para quem vai responder o pedido e sim apenas à autoridade da transparência, como acontece no eSIC do Governo de Alagoas e na plataforma Fala Brasil do governo federal, em que as Controladorias Geral do Estado e da União, respectivamente, oferecem a possibilidade de ocultação dos nomes, RGs, CPFs...
Estudo da organização Artigo 19, intitulado “Identidade revelada: entraves na busca pela informação no Brasil” mostrou, inclusive, os empecilhos gerados pela não proteção dos dados do cidadão no direito ao acesso à informação no país: intimidação ao jornalista, tratamento inadequado, perseguição, constrangimentos, dentre outros casos, além de apontar caminhos e orientações para que o problema seja resolvido e o direito seja fielmente preservado, sem prejuízos ao cidadão.
Nessa mesma época, o Queremos Saber, projeto da OKBR, surgiu para ajudar pessoas que se sentissem intimidadas ou constrangidas ao fazer o pedido via LAI. Funciona assim: primeiro você faz um cadastro no site da iniciativa, sem precisar repassar nenhum dado pessoal, depois faz o pedido e é feito uma espécie de filtro em que a própria organização, ou seja, o CNPJ solicita para você, evitando que nos casos de eSICs que ainda não disponibilizam o anonimato, a pessoa não seja, digamos, rastreável. Legal, né?
Paralelo a isso, a Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados aprovou, em junho, o Projeto de Lei 5531/20, que altera a Lei de Acesso à Informação (LAI) para permitir que o pedido de informação seja realizado de forma anônima. A proposta, de acordo com a Casa, ainda será analisada em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
O avanço sobre as discussões no tema é inadiável: a democracia é baseada no poder do povo e sua legitimidade se dá quando participamos e temos acesso às informações da administração pública, a fim de controlar, de maneira mais incisiva, os entes. No contexto atual, de frequentes posicionamentos contrários ou conflitantes contra ela, não apenas o jornalismo, mas a participação do cidadão são necessários para usufruir desse direito sem se sentir coagido ou ameaçado.