Duzentas e noventa e uma risadinhas racistas
Falar que a Câmara do Recife é muito branca me rendeu uma onda de comentários negativos
“Jornalistas de bosta acordam com o pensamento de merda e dizem: vou postar para o povo comentar.” O jornalista em questão era eu. O “pensamento de merda” era a matéria que o Recife tem a quarta Câmara de Vereadores mais branca entre as 26 capitais (as três primeiras estão todas no Sul, onde a presença de descendentes europeus é maior na população). No caso da cidade em que eu vivo, 57% da população é negra. Mas 75% dos representantes dessa população no Legislativo são brancos. Em todo o Estado de Pernambuco, a média é de apenas quatro vereadores brancos em cada dez.
Quando eu decidi escrever sobre esse contraste de um conselho de brancos definir as políticas públicas de uma cidade essencialmente negra, eu não imaginava a avalanche de comentários negativos que o jornal receberia nas redes sociais. Tinha de tudo entre as quase 600 mensagens escritas no Instagram, Facebook e Twitter. Mas só uma coisa me tirou do sério: os 291 emojis de risadinha.
No Brasil, negros ganham 31% a menos do que brancos; têm 2,6 vezes mais chances de serem assinados; morrem 40% a mais de Covid-19. Não há nada de engraçado na forma como o nosso racismo é devastador. O Brasil foi o país que recebeu o maior número de africanos escravizados na história; com o desembarque de mais de 4,8 milhões de negros entre os séculos XVI e XIX. É o equivalente à população da Irlanda ou da Nova Zelândia.
Qualquer risada é racista, cruel, desumana.
Muitas das críticas à matéria argumentam que qualquer pessoa pode se candidatar; e vence quem tiver as melhores propostas. Além disso, por serem maioria na população, negros são mais da metade dos eleitores. Logo, a cor da pele do candidato não influencia no resultado. Não é verdade. Candidatos brancos recebem três vezes mais dinheiro de seus partidos para fazer campanha do que os negros. Não só. O dinheiro também chega primeiro a candidatos brancos, para depois chegar aos pardos, deixando os pretos para o fim da fila. Como em tudo o mais, a competição justa não existe.
E o problema não acaba na falta de dinheiro. Dani Portela (PSOL), a vereadora que eu entrevistei para o texto, fala em um aspecto ainda mais visceral. “Muitas vezes as pessoas negras se desestimulam da participação política pela violência política que sofrem. Participei de uma pesquisa do Instituto Marielle Franco que mostra que, em 2020, várias mulheres negras, trans e travestis foram eleitas. Só que nesse ano, assim que elas tomaram posse, elas receberam ameaças de morte”, contou. Erika Hilton, de São Paulo, foi ameaçada dentro do gabinete. Carol Iara, também de São Paulo, teve a casa alvejada por tiros. Em Niterói, Benny Briolly teve que sair do país após sofrer ameaças de morte. Em Belo Horizonte, Duda Salabert disse sofrer ameaças.
É hora de falar sério.
A chuva de críticas recebidas pela matéria não me demoveu um milímetro. Jornalismo de dados é uma ferramenta poderosa. Mas como várias outras, é suscetível à vieses, onde o racismo e outros preconceitos podem produzir resultados nefastos. Quanto mais importantes as reportagens usando dados se tornam, mais falta de diversidade se torna uma questão latente - inclusive entre as próprias equipes de jornalistas de dados. Para produzir jornalismo de dados local em um ambiente onde jorram desigualdades de todos os tipos, enfrentar o racismo é uma exigência.
Há caminhos, possibilidades. O Nordeste é a região do país com mais jornalistas negros; o dobro da média nacional. Em 2019, na Bahia, o Instituto Mídia Étnica e a Escola de Dados treinaram jornalistas negros para produzir conteúdos com enfoque étnico-racial usando dados. É preciso multiplicar essas iniciativas; formando negros (e também mulheres, LGBTs, pessoas com deficiência) capazes de se utilizar dessas armas para reportar.
Os dados usados para escrever sobre a Câmara do Recife são do Panorama do Legislativo Municipal, projeto alimentado pelo Senado Federal. A solução é mais jornalismo. As planilhas com a situação racial de cada cidade de Pernambuco e das capitais podem ser baixadas aqui e usadas para contar novas histórias. A solução é mais jornalismo, não menos.
Caixa de Ferramentas: Durante o Coda 2021, a Escola de Dados lançou um site com uma caixa de ferramentas, listando 145 plataformas e programas que podem ser usados para produzir jornalismo de dados. É possível filtrar por categorias a partir do trabalho que você quer fazer, como visualização, análise ou limpeza de dados. Também dá para sugerir novas soluções. Confira aqui.