Gritos de horror sufocados pela lama
Dados mostram que Grande Recife era uma tragédia esperando para acontecer
O morro vai se derretendo em lama e engolindo uma casa atrás da outra em Jardim Monte Verde, no bairro do Ibura (entre o Recife e Jaboatão dos Guararapes), enquanto duas vizinhas, que filmam o deslizamento, gritam de horror. Em outro vídeo, em Macaparana, na Mata Norte, a água lambe com tanta força uma casa, que as paredes de tijolos se desmancham e mergulham dentro da correnteza. Até a noite de ontem — quando este texto foi escrito — 93 vidas haviam sido perdidas em Pernambuco como decorrência das fortes chuvas que atingem o Estado. São quase 6,2 mil desabrigados, de acordo com a Defesa Civil estadual.
Famílias inteiras desapareceram. “Faleceu minha irmã, meu cunhado, faleceram 11 pessoas da minha família. Não foi fácil, não. Foi difícil. Difícil mesmo”, contava ontem, quase aos prantos, o auxiliar de pedreiro Thiago Estêvão, que sobreviveu a um deslizamento de barreira. O mesmo poder público que permitiu o soterramento, dificulta o enterro.
O horror é fruto do descaso antigo. Um estudo publicado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2018 mostrava que Recife era a cidade do país com o quinto maior contingente de pessoas vivendo em áreas com risco de enchentes e deslizamentos. Nada menos que 206.761 habitantes; o equivalente a 13,4% da população da capital pernambucana. Em Jaboatão, havia 188.026 moradores em áreas de risco. Em Olinda, somam-se outras 58.605 pessoas. A Região Metropolitana já era, então, uma tragédia esperando para acontecer.
Um ano antes, o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS), elaborado pela Prefeitura do Recife, mostrava que a cidade tinha 4.725 domicílios precários, como as palafitas do Pina destruídas por um incêndio no início deste mês. O déficit habitacional da cidade somava, então, 71.160 habitações. Embora esses sejam os dados oficiais mais atuais, tudo indica que a situação de moradia piorou na cidade nos últimos anos; em meio à crise econômica causada pela pandemia de Covid-19.
A ocupação desordenada dos morros da Grande Recife começou ainda na década de 40, como resultado da erradicação dos mocambos nos centros das cidades. Um estudo da Agência Estadual de Planejamento (Condepe/Fidem) aponta como as regiões da cidade que têm as melhores condições para construção foram sendo ocupadas pelos mais ricos, enquanto aos mais pobres foram destinadas justamente os locais onde a construção era mais difícil — exigiria um conhecimento especializado e mais investimento.
“As famílias de baixa renda para lá transferiram também os seus hábitos, técnicas construtivas e práticas domésticas: criar o seu chão, aplainando-o (nos alagados pelo acréscimo dos aterros, nos morros através de cortes); construir o espaço sem maiores preocupações com as características físico-naturais. Se os alagados eram bem conhecidos, esse não era o caso dos morros, onde o caminho das águas define um delicado jogo de equilíbrio com as formas de relevo”, lembra a pesquisa.
O resultado letal foi a saturação da encosta e a obstrução da drenagem. Na capital, onde dois terços da área territorial é composta por morros, o investimento na prevenção a desastres em 2022 não chega a R$ 150 milhões.
Na última semana, o discurso do poder público tem enfatizado o regime anormal de chuvas. Ter 13,4% da população da cidade vivendo à beira da morte parece um problema menor.
Dizer que a tragédia era inesperada é esquecer que Recife é a capital brasileira mais vulnerável às mudanças climáticas. No mínimo, o poder público precisa se precaver para enfrentar os eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes. Nos últimos seis meses, o desafio climático se impôs, primeiro na Bahia, depois no Rio de Janeiro. O que foi feito em Pernambuco para evitar algo parecido? O que tem sido feito em outros estados? Episódios como estes são o novo normal.
Ontem, políticos de diferentes partidos se aproveitam da morte e do luto para ganhar seus quinhões de votos num ano eleitoral. Todos eles fizeram muito pouco para evitar que os gritos de horror se repitam, sufocados pela lama.
Aqui, há uma lista de como ajudar as vítimas da chuva. Alimentos, produtos de higiene e de limpeza foram apontados pelo poder público como prioritários neste momento.