Inteligência artificial de Pernambuco contra fake news
Tem muita desinformação para se checar no Nordeste, diz Alice de Souza, criadora do Confere.ai
Alice de Souza é uma pioneira no uso de tecnologia no jornalismo em Pernambuco. Em 2020, enquanto o mundo enfrentava a pandemia, ela lançava o Confere.ai, um projeto que usava inteligência artificial para indicar as chances de um conteúdo conter desinformação. A iniciativa, financiada pelo Google News Initiative, fez de Alice a primeira nordestina a concorrer ao Sigma Awards, o principal prêmio internacional de jornalismo de dados. Em junho do ano passado, ela lançou “O grande boato”, livro que conta o processo de construção do Confere.ai.
Nesta entrevista que abre os trabalhos da Catolé em 2022, Alice reflete sobre o combate às fake news no Brasil, explica os prejuízos de não termos agências de checagem no Nordeste e diz o que devemos esperar da desinformação nas próximas eleições presidenciais.
Por que usar automação para combater a desinformação? A gente sabe hoje que a desinformação se espalha muito mais rápido do que uma informação checada, verdadeira. Os checadores estão sempre numa posição de reação. No sentido de que é a partir de uma desinformação que está circulando com muita frequência que os checadores vão lá, fazem uma checagem e dão uma resposta. Sendo que esse processo, a gente que é jornalista sabe, leva tempo. É uma demora que a gente não consegue nem medir. Tem algumas checagens que a gente consegue fazer em algumas horas. Outras, demoram dias. A automação visa justamente dar mais celeridade ao checador. Ao mesmo tempo em que a sociedade tenha mais mecanismos para mitigar a desinformação.
Obviamente, é um uso ainda muito limitado. Pela própria tecnologia; em relação ao processamento de linguagem natural, identificação de contexto, etc. Mas, por outro lado, há um potencial de crescimento muito grande porque dá para você implementar tecnologias para fazer monitoramento de desinformação, como o CrowdTangle e o Radar Aos Fatos. De checagem em si, como é o caso do InVid. Ou no processo final, de entrega do resultado, que é mais ou menos o que é o Confere.ai. Que é dar a pessoa uma resposta que ajude ela a refletir sobre não compartilhar algo que ela tenha recebido nas redes sociais. É um espaço de experimentação óbvia, que tem que ser olhado com muito cuidado também. A tecnologia não vai conseguir sozinha dar uma resposta para esse problema da desinformação, mas ajuda bastante a gente a trabalhar.
Em "O grande boato", você diz que talvez o principal caminho da batalha contra a desinformação seja despertar o interesse da audiência para as checagens. Como nós podemos fazer isso? A experiência prática do Confere.ai no JC nos mostrou isso. É um grande desafio ainda despertar o interesse das pessoas pela checagem, por um desmentido. Porque a desinformação atrai mais atenção. Tem a questão do viés de confirmação, do espelhamento do que a gente consome nas redes sociais. A gente está pronto para aceitar melhor aquilo o que nos convém de acordo com as nossas crenças, interesses e ideologias. E para rechaçar tudo aquilo o que desmente ou complexifica o nosso entendimento de mundo. A checagem está nesse papel um pouco inglório de trazer a pessoa para a realidade. Muita gente sequer quer ter contato com isso porque não é conveniente. A realidade faz a gente lidar com algumas situações que a gente não quer. Eu permaneço achando que esse é um grande desafio. Não existe uma resposta única. Mas há alguns caminhos que já se indicam como possíveis. Dá para a gente usar da própria linguagem da internet. A gente tem aí os memes, a forma e o linguajar usado nas redes sociais como forma de atrair a atenção das pessoas para a checagem. Entregar a checagem não só em texto, mas em outros formatos; em música, em vídeo. Acho que o grande segredo, não só da checagem, mas da comunicação digital hoje em dia é saber utilizar todos os mecanismos que a gente tem disponíveis para chegar nas pessoas onde elas já estão. É muito difícil conseguir levar muita gente para o site de checagem. Mas se a gente entrega esse conteúdo de uma outra forma, no canal em que essas pessoas já estão, talvez a gente consiga atrair mais a atenção delas. Tornar isso lúdico, divertido, e não ser aquela pessoa chata que vai lá dizer "isso aí é mentira".
O segmento final do seu livro fala muito sobre como o uso de uma ferramenta de checagem pela audiência traz insights sobre como combater a desinformação. O que você aprendeu com o Verific.ai e com o Confere.ai que você gostaria de colocar em prática em novos projetos? A experiência do Verific.ai e do Confere.ai me deu vários aprendizados. O primeiro é pensar na tecnologia como mais um canal para mitigar o impacto da desinformação. Não como a única solução, totalmente capaz de resolver esse problema. Um segundo, é que a desinformação é algo que a gente vai precisar lidar durante muito tempo enquanto a gente não tiver um processo de alfabetização digital, midiática, que mostre as pessoas como elas são atores ativos do processo da comunicação digital. As pessoas precisam entender o que é uma checagem, o que é uma verificação, como se faz. Porque tem coisas que elas podem resolver, não precisam ficar esperando que a gente resolva. Do ponto de vista prático, também, me mostrou como usar a inteligência artificial a serviço do jornalismo. Isso foi muito interessante. Ela não vai substituir o jornalista. Mas ela é capaz de nos dar subsídio, por exemplo, para ancorar o nosso processo de checagem.
Por que o Confere.ai foi interrompido? Existe a possibilidade de ele ser retomado? O Confere.ai surgiu dentro da minha pesquisa de mestrado, com o Verific.ai, e a ideia inicial era testar se a tecnologia era capaz ou não de sozinha dar uma resposta binária se algo era desinformação. Na época, a gente criou um aplicativo, que foi o Verific.ai, dentro de um escopo limitado de pesquisa. Logo depois que eu defendi a dissertação, surgiu o primeiro desafio de inovação do Google News Iniciative, e a gente aplicou, mudando um pouco a ideia da ferramenta. Em decorrência disso, a gente teve verba para desenvolver o Confere.ai. Era um projeto de um ano. A ideia era tentar monetizar de alguma forma para levar ele adiante. Mas ele é um projeto que demanda um custo de manutenção muito alto porque envolve uma equipe de desenvolvedores, uso de inteligência artificial e uma equipe de checadores. Tem um custo de produção que, dentro da crise do modelo de mídia tradicional, torna-se um pouco inviável. Talvez se essa ferramenta fosse incorporada a algum serviço de checagem já existente, onde as pessoas tivessem essa expertise e uma equipe de desenvolvedores, fosse mais fácil de manter a longo prazo. A ferramenta permanece no ar, mas acho que faz mais ou menos um ano que ela não passa por nenhuma atualização. Então, as pessoas podem usar, mas tem coisa que precisa ser revista da metodologia mesmo do Confere.ai. Sempre existe a possibilidade de ele ser retomado. Hoje, a gente não tem nenhuma verba e nenhum contrato firmado de desenvolvimento.
No seu livro tem uma citação de Naeemul Hassan que fala sobre como a dificuldade de checagem e a falta de recursos atingem particularmente o jornalismo local. No Brasil, quase a totalidade dos serviços de fact-checking estão localizados no eixo Rio-São Paulo. Qual o prejuízo que isso causa num país grande como o nosso? Essa foi uma das grandes questões que me levou a tentar desenvolver uma ferramenta aqui no Recife. Fazer fact-checking é uma coisa relativamente recente no jornalismo. Estruturar um serviço desse requer um investimento inicial. É um trabalho muito hercúleo. Se a gente pegar a realidade do mercado aqui em Pernambuco, a gente tem sistemas de comunicação cada vez mais enxutos, repórteres fazendo mais de uma função, apurando para mais de um veículo, muitas vezes para mais de uma editoria e ganhando salários cada vez menores. Ter uma equipe de checagem não é sustentável. A gente acaba tendo que se aliar a serviços que já existem fora daqui. E a mídia do Sudeste ainda tem mais dinheiro e mais equipe.
A gente vive numa região que historicamente é vulnerável em vários dos seus direitos. É uma região mais pobre, onde a desigualdade é gritante, as pessoas não têm tanto acesso à educação de qualidade. A gente vem de uma região muito escravocrata, entre outras questões. E tudo isso faz com que aqui a gente precisasse muito mais de um serviço de checagem. Quando a gente fala de jornalismo local, a gente fala de um jornalismo que está muito mais sujeito ao poder empresarial e político. Serviços de checagem são independentes, apartidários. A gente perde muito enquanto sociedade porque não conseguimos complexificar a nossa capacidade crítica sobre a realidade em que a gente vive. Muita gente nem sequer acaba sabendo o que é um serviço de checagem por não ter aqui. E quem consome, acaba tendo acesso a serviços que são feitos desde outro lugar distante, que acabam, muitas vezes, falando sobre personagens ou políticos que sequer as pessoas conhecem. A gente acaba pensando que aqui não tem coisas para se checar, quando na verdade, tem. E tem muita coisa.
As últimas eleições para prefeito aqui no Recife foram permeadas por muita desinformação, por exemplo. Se a gente não tem um serviço aqui que mostre isso para as pessoas, a gente não consegue instrumentalizar essas pessoas para que elas pensem de maneira mais ativa sobre os candidatos. Não consegue, por outro lado, cobrar os candidatos, então eles podem mentir mais. Além dos prejuízos que são os mesmos de viver num deserto de notícias, que é acabar não tendo uma compreensão do seu entorno e se pautar por uma realidade que não é a sua. Principalmente num país como o Brasil, em que a realidade de São Paulo é completamente diferente da de Recife, que é completamente diferente da de Belém.
O Confere.ai foi o primeiro projeto do Nordeste a disputar o Sigma Awards. O que você acha que isso representa para o jornalismo de dados na região? Foi uma surpresa enorme participar do Sigma. A gente nunca imagina. Pelo menos eu coloco como objetivo fazer um trabalho de qualidade. Se ele vai concorrer a prêmio ou não, acaba sendo uma consequência. Foi isso que a gente tentou fazer com o Confere.ai, dentro da nossa realidade e limitações, mas também com o potencial da nossa equipe. A gente queria entregar uma ferramenta robusta, com uma acurácia muito alta, com um banco de dados muito grande, baseado em pesquisa e em ciência. Chegar ao Sigma, mostra que a gente conseguiu fazer isso mesmo com todas essas limitações de estar trabalhando com jornalismo local, dentro de um contexto de precarização do jornalista local, de crise do modelo de negócios da mídia tradicional. A gente não trabalhava com os mesmos recursos que os nossos amigos do Sudeste, que entregam coisas incríveis em tempo muito curto. Então, mostramos que, sim, dá para fazer jornalismo de dados no Nordeste, de qualidade, concorrer nessas premiações. Mas, ao mesmo tempo, é um exemplo. Porque a gente não tem mais exemplos? Só que isso não vai acontecer sem que essas pessoas tenham formação, qualificação. Não falta gente de qualidade. O que falta é um olhar mais atento e um interesse das pessoas que fazem jornalismo de dados em outros lugares de qualificar o que tem sido feito aqui. De ajudar a potencializar o universo de jornalismo de dados de outras regiões do Brasil. E não falo nem só do Nordeste, mas do Norte, do Centro-Oeste.
Eu espero que esse exemplo do Confere.ai sirva de inspiração para outras pessoas que têm interesse em trabalhar com jornalismo de dados no Nordeste. Você não precisa ser um expert. Eu sempre tive interesse pelo tema, mas para fazer o Confere.ai tive que buscar desenvolvedores de outras áreas. E a gente está no Recife, que tem o Porto Digital, algumas das principais empresas de tecnologia do país. A gente não consegue usar isso a nosso favor? Como a gente pode dialogar mais com esses espaços, como o Cesar, o CIn, para usar as tecnologias disponíveis hoje e qualificar o jornalismo que a gente tem feito, formar jornalistas em programação. O que falta é gente disposta a abrir esses caminhos. Como sempre.
A pandemia nos colocou diante de fake news que afetavam muito diretamente a saúde e a vida das pessoas. Você acha que o combate à desinformação sai mais forte desse processo? Definitivamente o combate à desinformação sai mais forte da pandemia. Porque houve um amadurecimento da checagem nesse período. Tivemos que fazer alianças e trabalhar em rede para poder conseguir entregar checagens. A gente está lidando com um problema de saúde pública que implica a vida das pessoas. Então, sinto que a sociedade entendeu mais o poder da mentira. Não da forma que a gente gostaria, mas há essa compreensão maior das pessoas. E há um amadurecimento dos próprios checadores. Do ponto de vista saber o que checar, como checar, da velocidade da entrega dessa checagem. E na maneira de entregar esses conteúdos às pessoas. Algumas instituições também se implicaram mais na tentativa - limitada ou não - de combater a desinformação, como o TSE, o próprio Congresso com a discussão de leis. São soluções questionáveis, por não serem soluções no meu ponto de vista, mas que, de certa forma, mostram para a gente, que as pessoas estão olhando mais para esse problema. Isso, por si só, nos dá uma esperança. As pessoas já sabem o que é uma fake news hoje em dia. Agora, a gente precisa trabalhar numa outra esfera, que é fazer elas desacreditarem dessas fake news.
Este ano, nós teremos a primeira eleição presidencial pós-2018. O que nós podemos esperar em termos de desinformação e como enfrentá-la? Infelizmente, o que a gente pode esperar é desinformação. Desde 2016, não dá mais para olhar para um processo eleitoral sem enxergar ele como um espaço ativo de disseminação de desinformação. E aí, vem de todos os lados. Dos políticos, dos partidos, dos marqueteiros, da própria sociedade. A gente permanece num ambiente de muita polarização. Não conseguimos romper esse ciclo de fazer as pessoas complexificarem o pensamento delas sobre o mundo, ao ponto de parar de ver as coisas de maneira maniqueísta. O grande erro de 2018 foi a gente não esperar um ambiente polarizado, de muita desinformação, porque já havia indícios fortíssimos de que o processo eleitoral seria permeado de muitas mentiras. E a gente deixou para se dar conta disso muito em cima da hora, quando não tinha mais o que fazer. Então, acho que se a gente se mune dessa realidade, a gente consegue pensar formas de mitigá-la. Temos muito mais instrumentos para lidar com a desinformação do que no passado. Temos muito mais jornalistas formados em fact-checking, mais ferramentas capazes de nos auxiliar na checagem de fatos. O que não significa que a gente está totalmente preparado. O que está se desenhando é também um cenário de muita agressividade com o jornalista. Vai ser muito mais difícil fazer o nosso trabalho. E a gente precisa atuar muito mais em rede, se fortalecer. E aí vale refletir o quanto a mídia e jornalistas do Sudeste do país podem fortalecer o trabalho que é feito aqui no Nordeste. Porque, de outra forma, talvez a gente aqui não tenha tantos instrumentos para lidar com o cenário que se avizinha.
Para fortalecer o trabalho feito no Nordeste, você pode seguir Alice de Souza, conhecer o Confere.ai e ler “O grande boato”.