Dados da Covid-19 evaporam, mas ninguém liga
Ataque cibernético, mudança de formato, erro de soma. Transparência da pandemia está sob constante ameaça
Desde o último fim de semana, Pernambuco registra a menor média móvel de casos de Covid-19 desde o início da pandemia. O número seria um milagre digno de celebração; não fosse o fato de que é uma mentira, como todos o sabem. “Por mais um dia, os dados de casos leves continuam sem divulgação devido à indisponibilidade do sistema e-SUS Notifica do Ministério da Saúde”, é a frase que a Secretaria Estadual de Saúde tem incluído nos boletins desde o dia 11 deste mês.
Para se ter uma ideia da cegueira que isso representa, 91,43% dos casos da doença registrados no Estado até o dia 10 eram classificados como leves. De forma simples, são aqueles que não demandam internação hospitalar. Nem por isso deixam de ser capazes de transmitir a doença.
O apagão nos sistemas nacionais de notificação é resultado de dois ataques hackers ao Ministério da Saúde após o Supremo Tribunal Federal (STF) instituir a obrigatoriedade de passaporte de vacinação para quem tenta entrar no País. O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República suspeita, inclusive, que o login e senha de um servidor público tenha sido usado para ter acesso aos sistemas.
Em novembro de 2020, o Ministério da Saúde já havia sofrido um ataque cibernético e desativou parte dos seus sistemas para evitar comprometê-los. Na época, o atraso nas notificações foi de oito dias; menos do que a experiência atual.
“Os dados da pandemia estiveram sob ameaça de diversas maneiras. Ora por vontade política, com as mudanças constantes de critérios de divulgação de dados pelo governo federal ou a opção de prefeituras por retirar painéis do ar durante a campanha eleitoral. Ora por fatores externos, como o apagão literal que deixou o Amapá sem energia elétrica por mais de três semanas, ou ataques cibernéticos que geraram instabilidades nos sistemas compartilhados pelos entes públicos nas diferentes esferas de administração. Sem contar a exposição de dados, muitos deles sensíveis, de milhares de pessoas por falhas de segurança no Ministério da Saúde”, afirma relatório da Open Knowledge Brasil.
A Catolé já mostrou como ter dados abertos sobre a pandemia é importante para jornalistas, pesquisadores e para que a própria população possa tomar decisões informadas sobre a própria saúde.
Infelizmente, ataques de hackers não são o único problema.
O acesso à informação oficial sobre os casos leves em Pernambuco, por exemplo, foi uma longa luta. No final de abril de 2020, o Governo do Estado decidiu parar de incluir as cidades onde estavam os casos leves no boletim da SES. Em 17 de maio, a localização de mais da metade das infecções pela Covid-19 em Pernambuco já era desconhecida.
A alegação dos técnicos da pasta com quem conversei na época era que algumas prefeituras estavam questionando os números. Como àquela altura o Ministério da Saúde não permitia que os municípios fizessem alterações no sistema de notificação, a solução encontrada por Pernambuco foi simplesmente não informar onde esses casos estavam. Tratava-se de um ano de eleição municipal.
No início de setembro, o Estado tinha mais de 100 mil casos de Covid-19 que o governo simplesmente se negava a informar onde ocorreram. A ausência de informações era suprida por projetos de abertura de dados como o Brasil.IO, onde eu atuo como voluntário. Era lá que o Jornal do Commercio coletava informação para alimentar um painel com números por município (rompendo a cegueira imposta pelo governo), como Luisa Farias contou aqui na Catolé.
Cento e vinte e nove dias depois de sumirem, as cidades dos casos leves voltaram ao boletim em 3 de setembro. Finalmente, a limpeza da base de dados, com alteração de registros entre os municípios havia sido permitida. Em Pernambuco, 51 cidades tiveram o número de casos reduzidos. Mas só em 16 dessas, as discrepâncias eram superiores a dez casos. Só em duas os ajustes superavam 10% das infecções registradas: Chã Grande e Ibimirim.
“Em prol da acurácia de cinco ou seis cidades onde as mudanças foram estatisticamente relevantes, o governo nos deixou sem informações oficiais sobre a localização dos casos leves de Covid-19 por mais de quatro meses, no auge da pandemia. Em termos de saúde pública, não faz sentido”, eu tuitei na época.
Continua não fazendo sentido.
E não foi o único problema. Desde o início da pandemia, tivemos erros de soma de casos positivos; erro no número de testes realizados; divulgação de dados de vacinação mudando de formato.
Atualmente, o número de vacinados por categoria tem passado por mudanças bem frequentes. Num dia, o Estado tem 8660 idosos institucionalizados vacinados. No dia seguinte, são 8451. Para onde foram as 209 pessoas que o governo vacinou achando que eram idosos em abrigos? Ninguém sabe. Antes que dê tempo de entender, é o número de vacinados em situação de rua que muda. De 8267 numa data para 3171 no outro e 1480 no terceiro dia. Havia 6,7 mil pernambucanos que foram incluídos na vacinação porque achava-se que eles moravam na rua e eles não moram?
É possível. Mas aí, o número que foi avançando pouco a pouco até 1528 salta, do nada, para 2945. Uma semana depois, novo pulo para 5881. E, depois de alguns dias, nova queda para 2956. Nenhuma dessas mudanças foi explicada pela SES no boletim diário ou no painel que divulga os dados de vacinados.
Ninguém parece interessado em perguntar também. Talvez porque a Covid-19 tenha virado um assunto ordinário, comum. Talvez porque ninguém acompanhe de verdade os números de vacinados (ou nem mesmo saiba que essas informações existem e estão disponíveis para consulta).
O fato é que os dados são por vezes transparentes e, por outras, opacos. Evaporam e ninguém liga. E quanto menos gente liga, mais eles desaparecem diante dos nossos olhos.
A Catolé é uma newsletter para os que se importam.
LAI descumprida: Levantamento da Olhos Jornalismo e da Énois Conteúdo fez pedidos de acesso à informação em 114 cidades com mais de 10 mil habitantes no Norte e no Nordeste. O prazo para resposta foi descumprido por 94% delas. Inclusive por todas as três analisadas em Pernambuco: Abreu e Lima, Afrânio e Itaíba. Uma das autoras é a Géssika Costa, que escreveu para a Catolé em novembro sobre as práticas de constrangimento e perseguição que ainda existem para se utilizar a Lei de Acesso à Informação (LAI).
Esta é a nossa última edição em 2021. Espero que tenha valido a pena nos acompanhar nos últimos meses. Muitas histórias nos aguardam em 2022. Boas festas!!!