“Imprensa tradicional precisa acordar: ou inova ou fecha as portas”
Catolé entrevista Rodrigo Cunha, que criou grupo de pesquisa sobre jornalismo de dados na UFPE
Eu estava me formando na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), entre o final de 2014 e o início de 2015, quando o professor Rodrigo Cunha chegou ao Departamento de Comunicação. Naquela época, eu sequer conhecia a expressão “jornalismo de dados”. Pioneiro, Cunha fundou em 2016 o GRID (Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Design da Informação Jornalística), que concentra debates e pesquisas sobre visualização da informação e jornalismo de dados.
Nessa entrevista para a Catolé, nós conversamos sobre os desafios de ensinar jornalismo de dados numa universidade pública ainda hoje; sobre a importância central da visualização para o jornalismo e sobre o legado da pandemia. Também sobre o futuro dos dados no combalido mercado de jornalismo local. “As empresas estão na contramão do que acontece no exterior. Em algum momento elas vão ter que acordar”, alerta o professor.
Como é trazer o tema do jornalismo de dados para dentro de uma universidade pública? O jornalismo de dados, apesar de estar tão falado hoje, não é uma coisa nova. A prática do uso de dados dentro do jornalismo é algo que vem desde a década de 1960, com o chamado jornalismo de precisão. E qual era a proposta do jornalismo de precisão? Utilizar metodologias das ciências sociais, como a estatística, na produção jornalística. Hoje a gente vê um boom dessa produção por causa da própria evolução dos computadores, das linguagens de programação acessíveis, como Python e R. As próprias redações têm se redesenhado nesse cenário, com profissionais de diversas formações. Não só jornalistas, mas designers, cientistas da computação, estatísticos...
Inserir esse ângulo dentro da universidade é um pouco desafiador. Primeiro, porque a gente lida com uma grade curricular já defasada. Muitas das grades das universidades federais são da década de 1990 ou dos anos 2000. De antes dessa expansão do jornalismo de dados. E a gente tenta inserir esse tema como cadeira eletiva, ou dentro da grade já existente, incorporando essa bibliografia. Outro desafio que a gente ainda tem, principalmente aqui no Brasil, é a falta de bibliografia sobre esse assunto. Tanto que algo que estou tentando produzir são referências em português sobre isso, porque a maior parte das referências em jornalismo de dados ainda são em inglês ou espanhol. Também estou tentando construir essas relações a partir do grupo de pesquisa, ampliando a discussão sobre o assunto. A gente tenta embarcar em várias frentes para poder produzir esse tipo de conhecimento prático das universidades.
O GRID não só tem base em Pernambuco, mas tem pesquisadores externos da Paraíba, do Ceará e de outros estados. Qual a importância dessa produção acadêmica sobre jornalismo de dados ser feita no Nordeste? É interessante essa pergunta porque, apesar de a produção de dados estar muito centrada ainda no Sul e Sudeste, onde a grande imprensa nacional está, aqui no Nordeste a gente vê um florescimento dessa área. Na UFPE, a gente tem o próprio Centro de Informática, o CIn, que tem professores que são referência nesse campo. Eu cito até o exemplo do Nivan Ferreira, que é um professor de visualização de dados e que tem esse interesse sobre jornalismo de dados. Tanto que a gente está pensando em produzir um projeto de extensão dentro da UFPE que mexa um pouco com jornalismo e visualização de dados. A gente tem o Porto Digital, que também é um centro de referência com vários profissionais com expertise em análise de dados. E, ao mesmo tempo, eu tenho visto o interesse dos jornalistas em outras áreas. Na Paraíba, por exemplo, tem a Adriana Alves, que é formada em jornalismo, mas o doutorado dela é em Ciência da Informação e o interesse dela é em visualização de dados. No Ceará, nós temos jornais regionais, como O Povo, discutindo e produzindo jornalismo de dados. E, claro, a gente tem o papel importante do jornalismo independente que tem, além da liberdade editorial, uma liberdade de experimentação. Veja o exemplo desses coletivos, como a Marco Zero Conteúdo aqui em Recife, que têm produzido um jornalismo regional de qualidade, mas também se interessado na produção de um conteúdo experimental, de dados e de comunidade. E que têm se interessado em entrar no GRID.
Eu digo que o GRID é um grupo em formação; em formatação inclusive. Mas ele tem um futuro muito promissor. Trazer esses profissionais de outros estados também agrega experiências e traz grandes contribuições dentro das nossas discussões. Esse olhar inter-estadual da Paraíba, da Bahia, é muito interessante e traz um conhecimento prático de como estão funcionando essas redações nesses outros estados.
O senhor vem do background da dataviz. E eu sinto, às vezes, que muita gente quando está começando a se interessar por dados, foca muito em raspagem, aprender programação, e esquecem esse ramo da visualização que pode ser tão ou mais importante do que a análise em si. Qual o papel da visualização de dados no jornalismo? A visualização é realmente tão importante quanto a análise. É como a diferenciação front-end e back-end. Quem tá no front-end tem tanta importância do que quem está por trás, na engrenagem e na análise. Isso porque o front-end é o que vai ter o contato direto com o leitor. E a visualização de dados tem um poder já demonstrado há muitos e muitos anos. É uma área do conhecimento já estabelecida, que se desenvolve desde a primeira época de ouro da visualização, lá em 1700, quando foram produzidas as primeiras visualizações de dados que hoje nós conhecemos como gráficos de pizza e de barras. Todos vieram dessa época. Depois a gente vê uma certa queda até o florescimento de novo hoje em dia, o que chamamos de segunda era de ouro.
Isso ocorre porque a visualização de dados tem esse poder de explicação muito direta. Ao invés de a gente ter que escrever dois ou três parágrafos de texto, em uma visualização a gente pode resumir tudo isso. E tem o segundo poder, que é dar veracidade àquela informação veiculada, por ela ter sido baseada em dados. Quando um conteúdo é acompanhado de um gráfico, a pessoa tende a confiar mais. E, por conta disso, a gente tem o dilema ético de como vamos mostrar esses dados. Inclusive para não burlar o leitor. A visualização também é uma gramática. Ela precisa ser ensinada e, ao mesmo tempo, aprendida pelas pessoas. As pessoas precisam aprender a ler gráficos e a interpretar dados. E aí entra um papel importante do jornalismo de ensinar as pessoas a ler. A gente tem esse conhecimento do gráfico de barras ou de pizza, mas quando você cria um gráfico diferente, você precisa colocar uma legenda ou incluir um pequeno manual de como a pessoa vai ler e entender aquela visualização.
Hoje, nessas telas móveis, a gente é muito visual. E o gráfico atrai as pessoas. Ele é dinâmico, colorido, interativo. Mas, ao mesmo tempo, você tem que ter o cuidado de não mentir por causa disso. A gente tem muitos exemplos de gráficos da Fox News, nos EUA, que são muito tendenciosos ou incorretos. A gente está num ano muito importante, eleitoral, que terá gráficos tendenciosos ou enganosos, mudando a base de um gráfico de barras, por exemplo. É esse tipo de armadilha que a pessoa tem que evitar.
Com a pandemia, passamos a ter um uso mais presente de conceitos de dados, como a média móvel, e visualizações diferentes. Qual o legado que a pandemia deixa para quem trabalha com dados no jornalismo? A gente vê uma ascensão de dados em eventos específicos. Existem dois grandes eventos aqui no Brasil em que há uma grande ascensão de dados e do jornalismo de dados. São eventos esportivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, em que a gente vê jornais que abrem cadernos especiais e trazem dados sobre cada país, sobre os jogadores e sobre a atuação das equipes. A outra é a política. Sempre no ano eleitoral a gente vê esse uso mais frequente de dados. E agora temos também as coberturas especiais. Nos EUA, tem muitas coberturas de catástrofe, como furacões, terremotos. E o coronavírus se inseriu nisso. Foi um evento não programado, um surto que aconteceu. O jornalismo não estava preparado para isso. As pessoas correram em busca de informação para entender o que estava acontecendo. E aí o jornalismo de dados e as visualizações foram centrais para que as pessoas pudessem entender como o vírus se propaga em ambientes fechados, em ônibus e metrôs, qual a efetividade de lavar as mãos, qual a efetividade de usar máscaras. A visualização de dados teve esse papel brilhante para ensinar como a máscara poderia evitar as partículas da Covid de infectar as pessoas.
Hoje, a gente tem um leque enorme de visualizações. A gente fala muito nos gráficos de pizza e de barra. Mas os economistas usavam muito o candlestick chart, que é aquele gráfico para mostrar as subidas e descidas da bolsa de valores. Alguns atlas usavam muito aquele mapa cloroplético, em que você tinha cada região pintada com cores mais fortes ou mais escuras. Você tem diagramas de cordas, de densidade, histograma, mapa de calor. A gente tem um catálogo enorme de visualizações que as pessoas não estavam acostumadas mas que, agora, acabaram se abrindo para o público em geral. A Covid teve a importância de nos abrir mais para esse leque de visualizações, principalmente as da área de infectologia e imunologia. E aí o jornalismo também teve que ensinar as pessoas a entender o que estava sendo explicado ali.
A gente tem visto um desmantelamento do jornalismo local no Brasil, com veículos que fecham, que atrasam salários por seis meses. E trabalhar com dados exige um investimento financeiro, de tempo, às vezes até de treinamento. Qual o futuro do jornalismo de dados no jornalismo local? A gente vê que muitas das empresas de comunicação hoje estão na contramão do que está acontecendo no exterior. A gente vê um papel de desinvestimento, demissão, falta de pagamento. O que eu vejo como uma solução e um caminho que até falo com os meus alunos, é de primeiro a gente ter um olhar empreendedor. Se temos um mercado decadente, é dizer: crie o seu próprio mercado, crie o seu próprio veículo, sua própria newsletter, seu próprio site, seu próprio aplicativo. Outro fator também que tenho visto é o crescimento do jornalismo independente. São vários jornalistas que têm se agrupado, se unido, que têm até a experiência de ter passado por redações tradicionais, e estão se juntando para produzir um jornalismo com profundidade e qualidade. No Brasil, a gente vê muito mais os coletivos de jornalismo independente que tratam de temas regionais, de temas específicos como a mulher e a negritude, tendo essa oportunidade de fazer jornalismo com experimentação. São eles que estão trabalhando mais com dados, com visualização. Cito o exemplo do Nexo, premiadíssimo com as suas visualizações. Mas a gente vê o Amazônia Real, a Énois, a Gênero e Número, várias iniciativas da Agência Pública. Eles estão com esse olhar do que está acontecendo lá fora. E têm uma ânsia de trazer para cá, para o ambiente mais regional, esse tipo de produção.
O futuro que eu vejo para o jornalismo de dados é esse caráter experimental, inovador e de profundidade que o jornalismo independente tem trazido. E aí, claro, são pequenas redações, jornalistas que muitas vezes trabalham de casa, não têm a mesma estrutura que poderiam ter na mídia tradicional, mas que têm conseguido produzir um jornalismo de qualidade; baseado no crowdsource, na colaboração, no processo de assinatura para poder se sustentar. A saída está sendo por aí hoje. E o que seria ideal seria que as redações tradicionais também olhassem para isso e investissem nesse tipo de jornalismo. Infelizmente, não está acontecendo ainda. Em algum momento elas vão ter que acordar para isso. É como se diz na academia, quando você tem uma pesquisa, ou publica ou perde. Então ou você inova ou vai ficar no caminho e vai fechar as portas, infelizmente, pela falta de inovação e de um olhar mais cuidadoso para esse tipo de jornalismo.